quarta-feira, janeiro 25, 2006

A hóstia de groselha.

Um dia desses, acordei com uma necessidade gritando dentro de mim. Havia um leão me arranhando por dentro, tentando chegar à boca e saltar enfurecido para este mundo. Não era agonia e muito menos vontade de fugir do tédio. Eu bem gostaria de carregar comigo essa disposição ao descontentamento, como se, mais cedo ou mais tarde, eu fosse me cansar de tudo o que vivo. Mas a profissão que escolhi não me dá o direito de intediar-me. Passo horas a fio dentro de uma redação lidando com turbilhões de notícias, madrugadas sem fim organizando as minhas singelas opiniões que os jornais hão de divulgar no dia seguinte. Ando tão cercado de planos, pessoas e idéias, que me falta tempo para o tédio.
Naquele dia eu só queria sentir novamente o gosto da infância, nem que pra isso eu precisasse chupar um "geladinho de groselha". Já ouvi tantos nomes para o meu saudoso geladinho: dindim, gelinho, suquinho, chup chup, refresquinho, inho, inho, inho... e deve haver muitos outros. O geladinho já foi tão popular que me recuso a dar maiores explicações. Se nenhum desses nomes lhe parece familiar, só peço que apele a sua própria imaginação. No mais, eu não sei se teria conseguido sobreviver ao calor cuiabano se não fossem os geladinhos da dona Celma. O de groselha era meu preferido. Mas não se fazem mais geladinhos! Ou pelo menos eu nunca mais ouvi falar deles.
Havia em mim uma certeza: dedicaria aquela manhã de sábado a procurar um geladinho de groselha pelo centro dessa Cuiabá hoje tão transformada. Por mais difícil que fosse desempenhar uma busca como essa, eu não entregaria os pontos com facilidade. Ai do engraçadinho que ousasse me oferecer um picolé qualquer em troca do que eu tanto procurava!
Eram 7 da manhã quando eu e Sadam, meu adorável piquenês, deixamos o apartamento no Pico do Amor e nos dirigimos para o centro histórico de nossa ex-cidade verde. Caminharíamos até lá como dois amantes felizes que não têm com o que se preocupar. No caminho, eu já testava minha ousadia: entrava nos bares, padarias, abordava crianças e ex-crianças, perguntando a todos onde encontraria geladinho ou dindim ou gelinho ou suquinho ou chup chup ou refresquinho. "Nunca ouvi falar", resmungou a dona de um restaurante. Como ela podia ter Coca-cola e não ter geladinho? Sadam, que ficara amarrado do lado de fora, rosnava feito louco. Saí daquele ambiente desajustado, mas mantendo a confiança: haveria de encontrá-lo no centro.
A hora do almoço se aproximava e nada! Entrei no Hora-Extra, aquele mesmo boteco dos tempos de escola técnica, onde os amigos compravam cigarro picado. Comprei uma água pra mim e outra pro Sadam, que só gostava de água com gás. Bebeu-a todinha num pratinho improvisado e lambia os beiços feliz da vida. Olhei aqueles salgados nada saudáveis no balcão e constatei: era preciso dar um mata-leão na fome, e com urgência.
Ao sair do bar escolhi ser sincero comigo mesmo. Estava desnorteado e sem esperanças. O centro havia sido vasculhado e nem sinal de geladinho. Me dirigi à Praça da República e pasmem: Já não há mais hippies por lá! Também não há luminárias bonitas e bancos cheios de simpatia. Nem aquele monumento que louvava a paz em várias línguas está mais lá. Hoje, no meio da praça, existem esculturas malucas que deixariam qualquer escultor dadaísta enciumado. É tudo intergaláctico, de um jeito meio alienígena de ser. Eu preferia a nossa tendência indígena.
De súbito, avistei a porta da igreja ainda aberta e aquilo me pareceu um convite esplêndido. Tomando Sadam no colo, adentrei a catedral basílica. Logo eu, cheio de pensamentos nietzscheanos, mulçumanos, umbandísticos e cabalísticos. Eu, que sabia tudo e não cria em nada. Pelo menos havia salvo o dia e minha fome de infância estava saciada. Aqueles minutos dentro do templo católico me remeteram à época em que o frequentava assídua e pontualmente. Modéstia parte, nos meus tempos de guri, tomava a hóstia de uma maneira tão sublime, que Sabino não pensaria duas vezes antes de retratar meus momentos de comunhão em seus escritos. Assim eram os tempos de infância, divididos entre a iniciação ao culto religioso e as brincadeiras cotidianas que faziam tudo ser mais bonito. A escola também não passava de brincadeira.
O cansaço do corpo tornou-se inevitável naquele sábado e acabamos (eu e Sadam) por tomar um ônibus na volta pra casa. Minh' alma sorria com leveza. O geladinho? Ah! Ainda não o encontrei. Até pensei em fabricar um, mas o tempo que me sobra já tem dono: é das conversas de bar e dos momentos de regressão hipnótica que passo dentro da igreja.
Larissa Campos

segunda-feira, janeiro 16, 2006

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a força de um ato
dura o tempo exato
para ser compreendida

depois disso é bobagem
vira longa-metragem
por acaso estendida

fora o essencial
nada mais é natural
vira apenas suporte

pena a vida não ter corte.

Martha Medeiros

=> Uma espera angustiante numa livraria pode te levar a conhecer coisas incríveis. Com Martha foi assim e, desde então, apaixonei-me. Um dia, hei de escrever tão fácil quanto essa gaúcha!