quinta-feira, março 09, 2006

Uma carta de amor ou um frasco de tranquilizantes?

Nossos dias eram costumeiramente quentes, de um calor que muito dificilmente se desfazia com a chegada da noite. A verdade, é que nunca me afastei das exceções e da vontade de dar vazão a elas. Tudo o que se repete continuamente atinge um ponto de saturação e, mais cedo ou mais tarde, deixa de fazer sentido. Deveríamos ser mais atentos às exceções do que às regras propriamente ditas. Por esse motivo, sinto-me no direito de trocar o sol pela chuva, o dia comprido e compromissado pela noite veloz e preguiçosa.
Naquelas noites de sábado quase tudo era exceção. A chuva que costumava nos abençoar, o frio que arrepiava nossos corpos e nos levava a trocas de calor sempre mais compulsivas. O choro inexplicável dentro daquele quarto abarrotado de esperanças. As batidas excitantes do seu coração. Ritmos musicais frenéticos. Num desses sábados que já se perdem no tempo, saímos apressados enquanto a garoa caía. As mãos eram vínculos eternos e inquebráveis e perto de você eu não podia temer coisa alguma. Caminhamos com a calma dos amantes, apressando o passo quando um ou outro sinal aberto nos tirava daquele estado de leveza superior.
A umidade destruindo toda a presença excêntrica dos meus cabelos em onda, sem incomodar-me. As mãos escorregadias, os passos inseguros pelas calçadas molhadas, o silêncio como souvenir. Buracos e mendigos, putas e taxistas ficavam pra trás. Não dialogávamos, mas sabíamos com clareza qual seria o destino. A convivência intensa havia nos levado a desenvolver técnicas telepáticas e hipnóticas facilmente comprovadas. Éramos especialistas, com Ph.D. em leitura d' alma.
De repente, a praça. Fevereiro estava pra chegar e as luzes de natal ainda estavam por lá. As mãos se apertavam num sinal claro e inevitável: nossa história havia começado ali. Caminhamos até o coreto, usamos os degraus como assento. Apartir de então, o trabalho ficaria por conta de nossas mentes. Lembraríamos dos sorrisos já distribuídos, dos sanduíches divididos, das tantas voltas noturnas pela cidade, das conversas na banca de revistas, do choro e das dores sem explicação . Eu lembraria de toda fumaça que você disseminara pela praça e das formas geométricas que eu sempre enxergava conforme a fumaça subia. Você pensaria nos origamis que fizemos sentados naqueles mesmos degraus, nos barcos que a correnteza da chuva levava e na maneira desengonçada como eu fazia dobraduras.
Você apertou minha mão com força e tirou da bolsa uma folha branca, novinha... Mais uma vez eu adivinhava seus pensamentos. Colocou-se a dobrar a folha com exatidão e perspicácia. A chuva aumentava e outro barco devia zarpar em breve. Com o tempo, pude ter a certeza de que viria à tona uma nova figura. E seria um coração.
Foi então que me dei conta de como estávamos mudados. Já não éramos tão jovens, já não éramos tão tolos. Não mais nos preocupávamos com os outros, não queríamos mudar o mundo.
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E os corações, como que por mágica, já não eram tão piegas assim.

Larissa Campos.

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