Pretextos.

Os sapatos logo ficaram pelos cantos, numa sexta-feira absurdamente seca. As pernas doíam depois de um dia de trabalho e de um longo tempo em pé no metrô lotado. No apartamento abafado, ela buscava os botões da blusa, para livrar-se do peso que as roupas provocavam. A blusa caiu sobre o sofá. A calça na mesa do computador. Livre e rodopiando pela sala, atirou-se no sofá, para celebrar aquela noite de ócio. Como era bom não ter o que fazer, não ter ninguém para conversar, aceitar a companhia única e definitiva do ventilador, a rodar no teto. A lagartixa de estimação cortou a parede e parou ao lado da porta de entrada. Contemplar o andar desengonçado do bicho a fez pensar que aquela casa devia ser um mundo grande demais para ele. "Você também é bicho", disse a voz do seu próprio pensamento. Uma gota de suor salgou sua boca, que se abriu para protestar: "Mas o universo é pequeno demais para mim".

O mundo nos dá raras chances de estar realmente só e mergulhar em si. Solidão também conforta.