quinta-feira, setembro 29, 2005

Clareza.

Ela sempre manifestara o desejo de transcrever aquele gosto de vida mais que vivida. Podia ser água jorrando por todos os poros do corpo ou luz invadindo as mais obscuras camadas da alma. O fato é que em momento algum sentia-se tão leve. A respiração, sempre pesada, mal era notada. Mesmo que tentasse, não conseguiria controlar o ar que entrava e saía, entrava e saía. Sutileza e musicalidade encravavam-se em cada molécula.
Havia dança e violinos.
O branco tornava-se ainda mais branco, o vermelho podia aquecer aquela pele clara. Todas as cores gritavam, esvoaçavam pureza em sua ânsia de libertação. Eram sempre imensas, com exceção da ausência de todas elas, que aparecia em pequenas porções, aqui e ali, ali e aqui, deixando claro que nem tudo lhe podia ser revelado. Por onde quer que andasse, sempre encontraria fissuras negras indicando o desconhecido. Pensava um dia atingir o conhecimento supremo, que está além dos livros e da razão, e onde tudo se faz claro. No dia em que se deparou com ele (ou seria a projeção?), certificou-se: não há nada mais ilusório do que clareza em totalidade.

Larissa Campos

sexta-feira, setembro 09, 2005

A saga de Valentina.

O nome de uma pessoa sempre diz muito, carrega consigo as expectativas e esperanças de quem coloca outra pessoa no mundo. Com Valentina também fora assim. Sua mãe, desde as brincadeiras de infância, quando aconchegava a boneca preferida entre os braços, pronunciava faceira, o nome mais valente que conhecia. Desejava dar vida a um ser destemido, já que ela mesma sempre pecara pela covardia. O primeiro passo era escolher um bom nome. Bastou que a menina tomasse um pouco de tamanho, para mostrar a mãe que não tinha o menor talento para “gente superior”.
O pai de Valentina havia saído de casa antes mesmo que ela viesse ao mundo. Disse que ia comprar um jornal na banca da esquina, mas esquecera de mencionar qual esquina era essa. O irmão só sabia repetir uma frase: “Eu não nasci pro trabalho.” Um dia, decepcionou-se com a vida e fugiu com a esposa do vizinho. Há quem diga que foram tentar a sorte no garimpo. A mãe era curandeira. Plantava ervas medicinais no quintal de casa e as transformava em garrafadas. Na parede da sala, pendurava as fotos de todas as pessoas que já havia curado. Faria inveja a qualquer cardiologista desse mundo de gente enfartada.
Valentina merece um parágrafo todo dela. É certo que não passava de uma folha seca e sem ambições, dona de uma beleza difícil de ser percebida. Era para os olhos de poucos. Sua satisfação estava naquilo que parecesse mais insignificante. Podia ter longos e seguidos orgasmos diante de um céu estrelado, de um doce de padaria ou de flor de maracujá. Estas eram suas preferidas. Sexo? Era prazer demais para uma pessoa tão modesta. No mais, não lhe agradava a idéia de ser invadida por alguém.
Foi num interminável dia de sol e fumaça que a má notícia chegou. A mãe já não existira mais. Herdava uma casa cheia de contas e um futuro minguado. Não trabalhava, nem sabia mexer com ervas, embora levasse os estudos a sério. A mãe passara três dias inteiros na fila para garantir que a menina pudesse estudar. Tanto sacrifício merecia recompensa.
Agora sua vida estava quebrada em mil partes, e decisões seriam inevitáveis. Logo com ela, que estava sempre fugindo de confrontos. Sentia-se velha como o ódio e tinha o peito apertado pela imagem da mãe: a velha devia ter morrido de desgosto, afinal, havia posto no mundo uma sonsinha que nem mesmo gostava de sair do próprio quarto. Por que continuar sendo chamada Valentina?
De repente, teve a grande e salvadora idéia: mudar de nome. A partir de então, seria Estela, para combinar com Estrela. Ótima saída para uma vida que precisava de brilho.

Larissa Campos